Vestígios dos tempos coloniais: antigos becos do Centro do Rio

Rio de Janeiro de ruas estreitas, de vielas imundas, quase sem árvores para fazer a sombra das calçadas“.

Com a frase acima, o jornalista e escritor João do Rio, um dos mais importantes e meticulosos cronistas cariocas, descreveu a aparência da cidade, no início do século XX.

O Rio a que João do Rio se referia era o anterior às reformas urbanas empreendidas pelo prefeito Pereira Passos, ainda caracterizado por uma feição colonial, mesmo que a cidade tenha sofrido algumas melhorias na época do Império.

O Rio desenvolveu-se livremente, sem planejamento urbanístico. A cidade possuía estilo árabe, de inspiração mourisca: as ruas eram estreitas, sinuosas, o casario era irregular e eram comuns casas de rótulas e gelosias.

Os detritos da população eram despejados em calhas ao ar livre, o que tornava as ruas fétidas e pestilentas. As calhas se situavam no meio da rua, a 60 cm abaixo do nível das laterais. Só após a chegada de D.João VI e da corte portuguesa, o aspecto das ruas seria melhorado. Nesta época foram construídas calçadas de pedra e passeios para que o transeunte não tivesse contato direto com a imundície.

Entre o traçado urbanístico da cidade proliferavam sinuosos becos e ruelas, que eram inúmeros no período colonial e alcançaram o início do século XX.

Beco Pequeno, no antigo bairro da Misericórdia

O escritor Luiz Edmundo descreveu o aspecto dessas vias: “As ruelas que se multiplicam para os lados da Misericórdia – Cotovelo, Fidalga, Ferreiros, Música, Moura e Batalha – são estreitas, com pouco mais de metro e meio de largura. São sulcos tenebrosos que cheiram a mofo, a pau-de-galinheiro, a sardinha frita e suor humano“.

Os becos do bairro da Misericórdia, no sopé do Morro do Castelo, não existem mais, assim como dezenas de travessas e vielas do Centro da cidade. Ainda assim é possível nos dias de hoje conhecer algumas amostras desses becos, como o dos Barbeiros, do Bragança, das Cancelas, dos Carmelitas, do Carmo, a Travessa da Natividade, entre outros que sobreviveram às reformas urbanísticas do Centro e tornaram-se últimos vestígios da urbe antiga.

Convidamos você a passear por alguns dos últimos becos do Rio colonial na região do Centro da cidade.

Foto: Alexandre Siqueira

Beco dos Barbeiros

Localiza-se entre as ruas Primeiro de Março e do Carmo. Foi aberto no período colonial, pela Ordem Terceira do Carmo, por exigência da Câmara Municipal. Tem esse nome por ter sido ocupado durante anos por negros barbeiros ambulantes, que possuíam até banda de música. O beco é calçado com grandes blocos de pedra, onde podem ser vistas as antigas calhas de ferro trabalhado para o escoamento das águas pluviais da Igreja da Ordem Terceira do Carmo. Em certo momento, cogitou-se mudar o nome do beco para Travessa Onze de Agosto, em homenagem à data de criação dos cursos jurídicos no Brasil. Mas a população não aceitou e continuou chamando a estreita rua de Beco dos Barbeiros, nome definitivamente oficializado em 1965. Muito procurado é o restaurante Escondidinho, localizado no número 12 do beco e famoso por sua costela bovina acompanhada de farofa de ovos. A casa funciona desde 1947.

Foto: Leo Ladeira

Beco das Cancelas

É considerada a menor e mais estreita das ruas do Rio. Liga a Rua Buenos Aires à do Rosário. Tem esse nome porque ali havia duas cancelas que fechavam a rua e só abriam durante o dia. No Beco das Cancelas funcionou o famoso Café Cascata, o primeiro café carioca a contratar garçonetes. O prédio desabou em 1897, mas foi logo reerguido. Outro café famoso do local foi o Amorim, freqüentado por banqueiros, tabeliães e comendadores e dono da fama de “um dos melhores cafezinhos da cidade”. Na esquina do beco com a Rua do Rosário existia uma bela casa azulejada que sediou uma agência de loterias de Camões & Cia.

Foto: Alexandre Siqueira

Beco do Bragança

Outra estreita via pública da cidade. Liga a Rua Primeiro de Março à Rua da Quitanda. Foi chamado por um tempo de Rua dos Quartéis, porque ali se instalaram, em 1615, as primeiras guarnições dos navios de guerra defensores da Baía da Guanabara. A viela chamou-se ainda Beco Manuel André e Beco Manuel Lopes, nomes de proprietários de casas ali localizadas. Um dos personagens famosos que habitou o Beco do Bragança foi a cantora Carmen Miranda. A família de Carmen morou em uma pensão na esquina da Rua da Candelária com o Beco do Bragança, residindo ali até 1915, quando se mudou para a Rua Joaquim Silva, na Lapa.

Foto: Alexandre Siqueira

Beco do Carmo

O minúsculo Beco do Carmo situa-se entre as igrejas de Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé e Ordem Terceira do Carmo, próximo à região da Praça Quinze. O acesso ao beco é feito pela Rua do Carmo, onde se localiza, sobre um arco de cantaria, o Oratório de N.S. do Cabo da Boa Esperança, um dos últimos oratórios públicos restantes do Rio Colonial.

Foto: Leo Ladeira

“O que eu vejo é o beco”

Beco dos Carmelitas

Ganhou esse nome por se localizar próximo à Igreja de N.S.do Carmo da Lapa do Desterro. No passado tinha má fama por ser frequentado por malandros e prostitutas da Lapa. Em compensação, por aquelas vielas transitaram nomes como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Heitor Villas-Lobos, Di Cavalcanti, Ismael Nery, Lúcio Rangel, Mário Lago e Noel Rosa. O poeta pernambucano Manuel Bandeira também frequentava o local, pois morava na Rua Moraes e Valle, bem em frente ao Beco dos Carmelitas. De sua janela, Bandeira contemplava o beco sujo onde viviam lavadeiras, costureiras e garçons dos cafés do Centro. Foi ali que Bandeira escreveu os poemas de Estrela da Manhã (1936) e Lira dos Cinquenta Anos (1940), incluindo o famoso “Poema de beco”:

“Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?

-O que vejo é o beco...”

Artigo por: Leo Ladeira

Fontes de Consulta:

• A Alma Encantadora das Ruas – João do Rio
• O Rio de Janeiro do Meu Tempo – Luiz Edmundo
• Rio Antigo – Turístico-Cultural do Centro da Cidade – 1979
• Blog Foi um Rio que passou
• Site Boemia e Nostalgia

Fotos:
Alexandre Siqueira
Leo Ladeira

© Olhos de Ver – Patrimônio Histórico Rio de Janeiro – Fevereiro 2022.

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2 comentários

  1. Muito rico o artigo!
    Nosso Rio antigo era lindo, embora não perfeito.
    Excelente! Parabéns, Olhos de Ver 👏🏻👏🏻👏🏻❣️

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